sábado, 30 de agosto de 2008

A ideologia nos engendra horrorosamente como cadáveres, chego a imaginar-me uma cerâmica na prateleira, antes fosse a de um museu, assim pensaria eu fazer parte da historia, a qual por ter aprendido em um ciclo vicioso de que está é um conjunto de fatos acumulados, e não como lutas de classes diz o presente Marx do sec.XIX.No entanto faço parte de uma prateleira periférica, distante da vida econômica, cultural e artística e assim por “livre” e espontânea vontade sou condenada a bater lata. Em fim algo pode romper essas murmuras do não saber, sem negar onde vivo, mas tenho lido tenho aprendido às decorrências históricas, a literatura, a filosofia, mas também me recuso a aceitar que a humanidade, a massa, o povo sabe e se desenvolveu junto a tais momentos percorridos nos livros, nisso se perde a idéia da escola que é justamente fazer com que dentro da própria possamos sair do senso comum pois entraríamos em contato com outros tipos de conhecimento.Com tudo se torna necessário um espaço de movimento pois nele ocorrerá algo que a instituição escola não dá mais conta, esse passo ao desvendar, o aprender....um passo....uma parada....mais um passo, paramos novamente......Outros passos....e assim vai nunca para.....
SOU NOMÂDE!!!
OCUPANDO OS TERRITÓRIOS
Rubens Pileggi


Jenny Holzer, da série Sobrevivência, 1987. Proteja-me daquilo que eu quero. Intervenção nas ruas de São Francisco, EUA. Ocupação de espaços físicos e mentais.


...Superado o problema da arte-objeto, o protagonista da experiência estética passa a ser o ambiente, enquanto espaço em que os indivíduos ou grupos sociais se inserem e vivem...

... muitos artistas, ..., procuram ambientes que demandam uma interpretação, um esforço aplicativo, uma vontade de estabelecer relações.

GIULIO CARLO ARGAN, A Arte moderna, pags. 587 a 590


Tópicos em desenvolvimento:

1. Território é espaço. Espaço é matéria. Logo, a colocação da matéria no espaço cria limites territoriais. Cria intervenções. E ela não pode ser desvinculada de seu conteúdo ideológico.

2. Lugar é espaço ocupado. O lugar cria sentido à idéia de espaço. Definições como dentro e fora são apenas convenções que tanto podem facilitar uma compreensão prática de localização, quanto servir de ideologia, para justificar segregações.

3. Arte pública não é obra pública. A presença de objeto, escultura e a idéia de monumento vinculadas ao estatuto de obra de arte, criando arte de encomenda para inaugurar edifícios e obras públicas, não condizem com o caráter crítico, que é próprio deste tipo de manifestações.


4. Pensamento também é matéria.

5. O pensamento formal deve acompanhar a linguagem, e aqui, ele não se resolve a priori. Eis algumas questões orientadoras:

A. Monumentos precários – Retomada da idéia do grafite dos anos 80, que ficou parado na técnica do spray. Precariedade formal e material. Não há mais necessidade de obra de arte como algo durável;

B. Monumental mínimo – É a partir do que a obra propõe que se coloca a relação de entendimento do espaço. Portanto, o ponto de vista da discussão é a partir do trabalho acontecendo no espaço, sua contextualização. Uma pequena intervenção em local específico pode ser mais eficiente do que uma enorme peça que não diz nada para ninguém, que fala só para si própria;


C. Ação urbana, social e imanente – Ocupação de territórios em tensão, regiões de conflito ou esgarçamento (social, patrimonial), de fluxos (centro-periferia);

D. Xamanismo - Abolição da fronteira entre o eu e o mundo. Conectando o mundo dos excluídos (fumadores de crack, mendigos, sem-tetos) ao mundo dos socialmente incluídos, através de rituais simbólicos, como por exemplo o são as lavagens de escadarias de igrejas, jogar copos de água limpa no rio Tietê, etc.;

E. Ação política – Uma arte fundamentada em atitudes. Formas novas exigem novos modos de operação com a realidade. Não há como evitar o confronto;

F. Vínculos -– Cultura como manifestação artística também fora dos circuitos de galerias e museus; cultura como capacitadora de inclusões e incorporações de contrastes; cultura como processo de contaminação;

G. Memória – Uma das definições de monumento segundo o Dicionário Aurélio;

H. O pensamento como matéria - As fronteiras diluídas entre os campos de conhecimento, ou seja, aonde começa a ciência e termina a filosofia? Qual a fronteira entre a arte e a religião?

I. Diluição da noção de autoria. A idéia de autoria é recente e seu caráter não condiz com novos modos de produção como os operados hoje, seja na música, com o hip hop, ou na internet, onde cada um adiciona o que quiser à informação, ou mesmo nas questões sociais comunitárias, diante das exigências de mercados globais, como associações, cooperativas, etc.. A idéia de participação e a possibilidade de interferência no processo da criação artística, faz com que a interação se torne a chave do trabalho.


Disponível em: www.rizoma.net




BIOPOLÍTICA E BIOPOTÊNCIA NO CORAÇÃO DO IMPÉRIO
Peter Pàl Pelbart



O Imperador da China resolveu, um belo dia, construir uma muralha para se proteger dos nômades, vindos do Norte. A construção mobilizou a população inteira por anos a fio. Conta Kafka que ela foi empreendida por partes : um bloco aqui, outro ali, outro acolá, e não necessariamente eles se encontravam. De modo que entre um e outro pedaço de muralha construído em regiões desérticas abriam-se grandes brechas, lacunas quilométricas (1). O resultado foi uma muralha descontínua cuja lógica ninguém entendia, já que ela não protegia de nada nem de ninguém. Talvez apenas os nômades, na sua circulação errática pelas fronteiras do Império, tinham alguma noção do conjunto da obra. No entanto, todos supunham que a construção obedecesse a um plano rigoroso elaborado pelo Comando Supremo, mas ninguém sabia quem dele fazia parte e quais seus verdadeiros desígnios. Enquanto isso, um sapateiro residente em Pequim relatou que já havia nômades acampados na praça central, a céu aberto, diante do Palácio Imperial, e que seu número aumentava a cada dia (2). O próprio imperador apareceu uma vez na janela para espiar a agitação que eles provocavam. O Império mobiliza todas suas forças na construção da Muralha contra os nômades, mas eles já estão instalados no coração da capital enquanto o Imperador todo poderoso é um prisioneiro em seu próprio palácio.



Kafka dá poucas indicações sobre os nômades. Eles têm bocas escancaradas, dentes afiados, comem carne crua junto a seus cavalos, falam como gralhas, reviram os olhos e afiam constantemente suas facas. Não parecem ter a intenção de tomar de assalto o palácio imperial. Eles desconhecem os costumes locais e imprimem à capital em que se infiltraram sua esquisitice. Ignoram as leis do Império, parecem ter sua própria lei, que ninguém entende. É uma lei-esquiza, dizem Deleuze-Guattari (3). Por que esquiza ? Talvez pela semelhança do nômade com o esquizo. O esquizo está presente e ausente simultaneamente, ele está na tua frente e ao mesmo tempo te escapa, sempre está dentro e fora, da conversa, da família, da cidade, da economia, da cultura, da linguagem.. Ele ocupa um território mas ao mesmo tempo o desmancha, dificilmente ele entra em confronto direto com aquilo que recusa, não aceita a dialética da oposição, que sabe submetida de antemão ao campo do adversário, por isso ele desliza, escorrega, recusa o jogo ou subverte-lhe o sentido, corrói o próprio campo e assim resiste às injunções dominantes. O nômade, como o esquizo, é o desterrritorializado por excelência, aquele que foge e faz tudo fugir. Ele faz da própria desterritorialização um território subjetivo.



Como pode o Império lidar com um território subjetivo de tal natureza ? Mas como pode ele deixar de lidar precisamente com isso ? Por mais que um Imperador tenha Muralhas concretas a construir, Império algum pode ficar indiferente a essa dimensão subjetiva sobre a qual ele se assenta primordialmente, sob pena de esfacelar-se - o que é ainda mais verdadeiro nas condições de hoje. De fato, como poderia o Império atual manter-se caso não capturasse o desejo de milhões de pessoas ? Como conseguiria ele mobilizar tanta gente caso não plugasse o sonho das multidões à sua mega-máquina planetária ? Como se expandiria se não vendesse a todos a promessa de uma segurança, de uma felicidade, o desejo de um modo de vida ? Afinal, o que nos é vendido o tempo todo, senão isto : maneiras de ver e de sentir, de pensar e de perceber, de morar e de vestir ? O fato é que consumimos, mais do que bens, formas de vida - e mesmo quando nos referimos apenas aos estratos mais carentes da população, ainda assim essa tendência é crescente. Através dos fluxos de imagem, de informação, de conhecimento e de serviços que acessamos constantemente, absorvemos maneiras de viver e sentidos de vida, consumimos toneladas de subjetividade. Chame-se como se quiser isto que nos rodeia, capitalismo cultural, economia imaterial, sociedade de espetáculo, era da biopolítica, o fato é que vemos instalar-se nas últimas décadas um novo modo de relação entre o capital e a subjetividade. O capital, como o disse Jameson, através da ascensão da mídia e da indústria de propaganda, teria penetrado e colonizado um enclave até então aparentemente inviolável, o Inconsciente. Mas esse diagnóstico é hoje insuficiente. Ele agora não só penetra nas esferas as mais infinitesimais da existência, mas também as mobiliza, ele as põe para trabalhar, ele as explora e amplia, produzindo uma plasticidade subjetiva que ao mesmo tempo lhe escapa por todos os lados, obrigando o próprio controle a nomadizar-se.


O Império contemporâneo, diferentemente do Império chinês do conto de Kafka, já não funciona na base de muralhas e trincheiras, e os últimos acontecimentos demonstraram cabalmente a falência da lógica da fortaleza. O Império se nomadizou completamente. Ou melhor, ele é a resposta política e jurídica à nomadização generalizada. Ele mesmo depende da circulação de fluxos de toda ordem a alta velocidade, fluxos de capital, de informação, de imagem, de bens, mesmo e sobretudo de pessoas (4). Claro que nem tudo circula da mesma maneira por toda parte, e nem todos extraem dessa circulação os mesmos benefícios. O novo capitalismo em rede, que enaltece as conexões, a movência, a fluidez, produz novas formas de exploração e de exclusão, novas elites e novas misérias, e sobretudo uma nova angústia - a do desligamento. O que Castel chamou de desfiliação, e Rifkin de desconexão. Ser ameaçado de desconexão, de desengate - sabemos que a maioria se encontra nessa condição, de desplugamento efetivo da rede. O problema se agrava quando o direito de acesso às redes, como o diz Rifkin (e agora trata-se não só da rede no sentido estrito, tecnológico e informático, mas das redes de vida num sentido amplo) migra do âmbito social para o âmbito comercial. Em outras palavras : se antes a pertinência às redes de sentido e de existência, aos modos de vida e aos territórios subjetivos dependia de critérios intrínsecos tais como tradições, direitos de passagem, relações de comunidade e trabalho, religião, sexo, cada vez mais esse acesso é mediado por pedágios comerciais, impagáveis para uma grande maioria. O que se vê então é uma expropriação das redes de vida da maioria da população, através de mecanismos cuja inventividade e perversão parecem ilimitadas.


Mas não deveríamos deixar-nos embalar por um determinismo tão apocalíptico quanto complacente. Parafraseando Benjamin, seria preciso escovar esse presente a contrapelo, e examinar as novas possibilidades de reversão vital que se anunciam nesse contexto. Pois nada do que foi evocado acima pode ser imposto unilateralmente de cima para baixo, já que essa subjetividade vampirizada, essas redes de sentido expropriadas, esses territórios de existência comercializados, essas formas de vida visadas não constituem uma massa inerte e passiva à mercê do capital, mas um conjunto vivo de estratégias. A partir daí, seria preciso perguntar-se de que maneira, no interior dessa mega-máquina de produção de subjetividade, surgem novas modalidades de se agregar, de trabalhar, de criar sentido, de inventar dispositivos de valorização e de auto-valorização. Num capitalismo conexionista, que funciona na base de projetos em rede, como se viabilizam outras redes que não as comandadas pelo capital, redes autônomas, que eventualmente cruzam, se descolam, infletem ou rivalizam com as redes dominantes ? Que possibilidade restam, nessa conjunção de plugagem global e exclusão maciça, de produzir territórios existenciais alternativos àqueles ofertados ou mediados pelo capital ? De que recursos dispõe uma pessoa ou um coletivo para afirmar um modo próprio de ocupar o espaço doméstico, de cadenciar o tempo comunitário, de mobilizar a memória coletiva, de produzir bens e conhecimento e fazê-los circular, de transitar por esferas consideradas invisíveis, de reinventar a corporeidade, de gerir a vizinhança e a solidariedade, de cuidar da infância ou da velhice, de lidar com o prazer ou a dor ? (5)


Mais radicalmente, impõe-se a pergunta : que possibilidades restam de criar laço, de tecer um território existencial e subjetivo na contramão da serialização e das reterritorializações propostas a cada minuto pela economia material e imaterial atual ? Como reverter o jogo entre a valorização crescente dos ativos intangíveis tais como inteligência, criatividade, afetividade, e a manipulação crescente e violenta da esfera subjetiva ? Como detectar modos de subjetivação emergentes, focos de enunciação coletiva, territórios existenciais, inteligências grupais que escapam aos parâmetros consensuais, às capturas do capital e que não ganharam ainda suficiente visibilidade no repertório de nossas cidades ?


Há alguns anos no Brasil eram visíveis configurações comunitárias diversas, ora mais ligadas à Igreja, ora ao Movimento dos Sem-Terra, ora às redes de tráfico, ou provenientes de movimentos reivindicatórios e estéticos diversos, como o hip-hop, ou modalidades de 'inclusão às avessas' proporcionado pelas gangues de periferia (6), mantendo com as redes hegemônicas graus de distância ou enlace diversos. Eu não saberia dizer o que está nascendo hoje nos centros urbanos brasileiros, muito menos nas demais cidades do planeta. Mas há um fenômeno que me intriga, entre outros. No contexto de um capitalismo cultural, que expropria e revende modos de vida, não haveria uma tendência crescente, por parte dos chamados excluídos, em usar a própria vida, na sua precariedade de subsistência, como um vetor de auto-valorização ? Quando um grupo de presidiários compõe e grava sua música, o que eles mostram e vendem não é só sua música, nem só suas histórias de vida escabrosas, mas seu estilo, sua singularidade, sua percepção, sua revolta, sua causticidade, sua maneira de vestir, de "morar" na prisão, de gesticular, de protestar, de rebelar-se - em suma, sua vida. Seu único capital sendo sua vida, no seu estado extremo de sobrevida e resistência, é disso que fizeram um vetor de existencialização, é essa vida que eles capitalizaram e que assim se auto-valorizou e produziu valor. É claro que num regime de entropia cultural essa "mercadoria" interessa, pela sua estranheza, aspereza, visceralidade, ainda que facilmente também ela possa ser transformada em mero exotismo étnico de consumo descartável. Mas a partir desse exemplo extremo e ambíguo, eu perguntaria, também à luz dos nômades de Kafka a quem me referi no início, se não precisaríamos de instrumentos muito esquisitos para avaliar a capacidade dos chamados 'excluídos' ou 'desfiliados' ou 'desconectados' de construirem territórios subjetivos a partir das próprias linhas de escape a que são impelidos, ou dos territórios de miséria a que foram relegados, ou da incandescência explosiva em que são capazes de transformar seus fiapos de vida em momentos de desespero coletivo.



Utilizando de maneira originalíssima textos de Gabriel Tarde, Maurizio Lazzarato debruçou-se recentemente sobre um feixe de questões correlatas (7), das quais reteríamos a seguinte: Que capacidade social de produzir o novo está disseminada por toda parte, sem estar essa capacidade subordinada aos ditames do capital, sem ser proveniente dele e nem depender de sua valorização ? A idéia de Tarde relida por Lazzarato, e que eu retomo nesse contexto de maneira excessivamente suscinta, é que todos produzem constantemente, mesmo aqueles que não estão vinculados ao processo produtivo. Produzir o novo é inventar novos desejos e novas crenças, novas associações e novas formas de cooperação. Todos e qualquer um inventam, na densidade social da cidade, na conversa, nos costumes, no lazer - novos desejos e novas crenças, novas associações e novas formas de cooperação. A invenção não é prerrogativa dos grandes gênios, nem monopólio da indústria ou da ciência, ela é a potência do homem comum. Cada variação, por minúscula que seja, ao propagar-se e ser imitada torna-se quantidade social, e assim pode ensejar outras invenções e novas imitações, novas associações e novas formas de cooperação. Nessa economia afetiva, a subjetividade não é efeito ou superestrutura etérea, mas força viva, quantidade social, potência psíquica e política.



Nesse contexto, as forças vivas presentes por toda parte na rede social deixam de ser apenas reservas passivas à mercê de um capital insaciável, e passam a ser consideradas elas mesmas um capital, ensejando uma comunialidade de auto-valorização. Ao invés de serem apenas objeto de uma vampirização por parte do Império, são positividade imanente e expansiva que o Império se esforça em regular, modular, controlar. A potência de vida da multidão, no seu misto de inteligência coletiva, afetação recíproca, produção de laço, capacidade de invenção de novos desejos e novas crenças, de novas associações e novas formas de cooperação, é cada vez mais a fonte primordial de riqueza do próprio capitalismo. Uma economia imaterial que produz sobretudo informação, imagens, serviços, não pode basear-se na força física, no trabalho mecânico, na automatismo burro, na solidão compartimentada. São requisitados dos trabalhadores sua inteligência, sua imaginação, sua criatividade, sua conectividade, sua afetividade - toda uma dimensão subjetiva e extra-econômica antes relegada ao domínio exclusivamente pessoal e privado, no máximo artístico. Como o diz Toni Negri, agora é a alma do trabalhador que é posta a trabalhar, não mais o corpo, que apenas lhe serve de suporte. Por isso, quando trabalhamos nossa alma se cansa como um corpo, pois não há liberdade suficiente para a alma, assim como não há salário suficiente para o corpo. Em todo caso, que a alma trabalhe significa, nos termos que mencionávamos há pouco, que é a vitalidade cognitiva e afetiva que é solicitada e posta a trabalhar. O que se requer de cada um é sua força de invenção, e a força-invenção dos cérebros em rede se torna tendencialmente, na economia atual, a principal fonte do valor. É como se as máquinas, os meios de produção tivessem migrado para dentro da cabeça dos trabalhadores e virtualmente passassem a pertencer-lhes. Agora sua inteligência, sua ciência, sua imaginação, isto é, sua própria vida passaram a ser fonte de valor. A associação e cooperação entre uma pluralidade de cérebros prescinde, no limite, da mediação do capitalista, tão decisiva num regime fordista.


Podemos retomar nosso leitmotiv : todos e qualquer um, e não apenas os trabalhadores inseridos numa relação assalariada, detêm a força-invenção, cada cérebro-corpo é fonte de valor, cada parte da rede pode tornar-se vetor de valorização e de autovalorização. Assim, o que vem à tona com cada vez maior clareza é a biopotência do coletivo, a riqueza biopolítica da multidão. É esse corpo vital coletivo reconfigurado pela economia imaterial das últimas décadas que, nos seus poderes de afetar e de ser afetado e de constituir para si uma comunialidade expansiva, desenha as possibilidades de uma democracia biopolítica.


Duas palavrinhas ainda. Uma a respeito do termo biopolítica e outra a respeito do termo multidão. Biopolítico foi o termo forjado por Foucault para designar uma das modalidades de exercício do poder sobre a vida, sobre a população enquanto massa global afetada por processos de conjunto. Um grupo de teóricos, majoritariamente italianos, propôs uma pequena inversão, não só semântica, mas também conceitual e política. Com ela, a biopolítica deixa de ser prioritariamente a perspectiva do poder tendo por objeto passivo o corpo da população e suas condições de reprodução, sua vida. A própria noção de vida deixa de ser definida apenas a partir dos processos biológicos que afetam a população. Vida inclui a sinergia coletiva, a cooperação social e subjetiva no contexto de produção material e imaterial contemporânea, o intelecto geral. Vida significa inteligência, afeto, cooperação, desejo. Como diz Lazzarato, a vida deixa de ser reduzida, assim, a sua definição biológica para tornar-se cada vez mais uma virtualidade molecular da multidão, energia a-orgânica, corpo-sem-órgãos. O bios é redefinido intensivamente, no interior de um caldo semiótico e maquínico, molecular e coletivo, afetivo e econômico, aquém da divisão biológico/mecânico, individual/coletivo, humano/inumano. Assim, a vida ao mesmo tempo se pulveriza e se hibridiza, se dissemina e se alastra, se moleculariza e se totaliza, se descola de sua acepção biológica para ganhar uma amplitude inesperada e ser, portanto, redefinida como poder de afetar e ser afetado, na mais pura herança espinosana. Daí a inversão, em parte inspirada em Deleuze, do sentido do termo forjado por Foucault : biopolítica não mais como o poder sobre a vida, mas como a potência da vida. A biopolítica como poder sobre a vida toma a vida como um fato, natural, biológico, como zoè, ou como diz Agamben, como vida nua, como sobrevida. É o que vemos operando na manipulação genética, mas no limite também no modo como são tratados os prisioneiros da Al Qaeda em Guantánamo, ou os adolescentes infratores nas instituições de "reeducação" em São Paulo - e os atos de auto-imolação espetacularizada que esses jovens protagonizam em suas rebeliões, diante das tropas de choque e das câmaras de televisão, não seriam a tentativa de reversão a partir desse 'mínimo' que lhes resta, o corpo nú ? (8). Em contrapartida, a biopolítica concebida como potência de variação de formas de vida equivale à biopotência da multidão, tal como referida acima.


Ainda uma palavra sobre a multidão. Tradicionalmente o termo é usado de maneira pejorativa, indicando um agregado indomável que cabe ao governante domar e dominar. Já o povo é concebido como um corpo público animado por uma vontade única. Com efeito, como o diz Paolo Virno (9), e nas condições contemporâneas isso é ainda mais visível, a multidão é plural, centrífuga, refratária à unidade política. Ela não assina pactos com o soberano, não delega a ele direitos, inclina-se a formas de democracia não representativa. Talvez ela seja regida por uma lei-esquiza, tal como os nômades de Kafka. Numa fórmula sugestiva, Virno ainda diz : a multidão deriva do Uno, o povo tende ao Uno. O que é esse Uno do qual a multidão deriva ? Para ir rápido, é o que Simondon chamou de realidade pré-individual (e que os pré-socráticos chamavam de a-peiron, Ilimitado), que Tarde referiu como virtualidade, que Marx designou por intelecto geral. Chamemo-lo de caldo biopolítico, esse magma material e imaterial, corpo-sem-órgãos que precede cada individuação - a potência ontológica comum. De qualquer modo, por menos que se saiba que desenho pode ter uma democracia biopolítica, sabemos ao menos que ela está nas antípodas do que Canetti definiu com sendo a lógica da massa, com sua composição homogênea e compacta, com sua direção única e liderança unitária. A multidão, na sua configuração acentrada e acéfala, no seu agenciamento esquizo, testemunha de um outro desejo e de uma outra subjetividade.


Eu concluo. Talvez Foucault continue tendo razão : hoje em dia, ao lado das lutas tradicionais contra a dominação (de um povo sobre outro, por exemplo) e contra a exploração (de uma classe sobre outra, por exemplo), é a luta contra as formas de assujeitamento, isto é, de submissão da subjetividade, que prevalecem. Talvez a explosividade desse momento tenha a ver com a extraordinária superposição dessas três dimensões.


Volta a pergunta insistente : Como pensar as subjetividades em revolta ? Como mapear o sequestro social da vitalidade na desmesurada extensão do Império e na sua penetração ilimitada, tendo em vista as modalidades de controle cada vez mais sofisticadas a que ele recorre, sobretudo quando ele se realavanca na base do terrorismo generalizado e da militarizaçao do psiquismo mundial ? Mas como mapear igualmente as estratégias de reativação vital, de constituição de si, individual e coletiva, de cooperação e auto-valorização das forças sociais à margem do circuito formal da produção ? Como acompanhar as linhas de êxodo e desinvestimento ativo dos 'excluídos', evitando enclausurá-los no território da exclusão, a exemplo daqueles que os privam da dimensão subjetiva e das linhas de escape que eles secretam a cada passo ? Em que medida a virtualidade da multidão extrapola o sistema produtivo atual com suas vampirizações, os modelos de subjetivação que ele engendrou (por exemplo, o do trabalhador assalariado), os cálculos do poder que ele suscita, a captura imperial e suas linhas de comando ? Além de recusar o sistema de valores e de exploração hegemônicas, como cria ela suas próprias possibilidades irredutíveis, mesmo quando isso é feito a céu aberto, nem que o Imperador esteja por perto, à espreita, espiando para ver no que poderia ele capitalizar aquilo que dele escapa ?


Não sei o quanto as poucas páginas de Kafka sobre a Muralha da China refletem a paranóia do Império contemporâneo, com suas estratégias frustradas para proteger-se dos excluídos que ele mesmo suscita, cujo contingente não pára de aumentar no coração da capital, numa vizinhança de intimidação crescente e num momento em que, como diria Kafka, sofre-se de enjôo marítimo mesmo em terra firme. Não sei o quanto os nômades de Kafka, na sua indiferença ostensiva em relação ao Império, não podem ajudar a pensar a lógica da multidão. Seja como for, em Kafka uma ironia fina vai solapando a solene consistência do Império. Há algo no funcionamento do Império que é puro disfuncionamento. Quando nas Conversas com Kafka, Janoush diz ao escritor checo que vivemos num mundo destruído, este responde : "Não vivemos num mundo destruído, vivemos num mundo transtornado. Tudo racha e estala como no equipamento de um veleiro destroçado." Rachaduras e estalos que Kafka dá a ver, e que a situação contemporânea escancara. Talvez o desafio atual seja intensificar esses estalos e rachaduras a partir da biopotência da multidão. Afinal o poder, como diz Negri inspirado em Espinosa, é superstição, organização do medo : "Ao lado do poder, há sempre a potência. Ao lado da dominação, há sempre a insubordinação. E trata-se de cavar, de continuar a cavar, a partir do ponto mais baixo : este ponto ... é simplesmente lá onde as pessoas sofrem, ali onde elas são as mais pobres e as mais exploradas ; ali onde as linguagens e os sentidos estão mais separados de qualquer poder de ação e onde, no entanto, ele existe ; pois tudo isso é a vida e não a morte." (10)


1. F. Kafka, A grande muralha da China, São Paulo, Europa América, 1976.

2. F. Kafka, "Uma folha antiga" (texto complementar ao A grande muralha da China), in Um médico rural, trad. Modesto Carone, São Paulo, Cia das Letras, 1999.

3. G. Deleuze e F. Guattari, Kafka - Por uma literatura menor, Rio de Janeiro, Imago, 1977.

4. Cf. Toni Negri e Michael Hardt, Empire, Paris, Exils Ed. 2000.

5. F. Guattari, "Restauração da Cidade Subjetiva", in Caosmose, Rio de Janeiro, Ed. 34, 1992.

6. Glória Diógenes, Cartografias da cultura e da violência. Gangues, galeras e o movimento hip hop, São Paulo-Fortaleza, Secretaria da Cultura e do Desporto, 1998.

7. M. Lazzarato, Invention et travail dans la coopération entre cerveaux, Essai sur la théorie sociale de la différence de Gabriel Tarde, à paraître.

8. Maria Cristina Vicentin, Rebeliões da juventude, tese, inédito.

9. Paolo Virno, "Multitudes et principe d'individuation", in Multitudes n. 7, Paris, 2001.

10. T. Negri, Exílio, São Paulo, Iluminuras.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Cada um de nós é muita gente!





Tentativa de definição do Fórum-Nômade



..."Um fórum incomum, desarraigado dos tradicionais conceitos de fórum, vítima de uma desterritorialização, sem mesmo uma organização interna. (?) Parece inviável, impossível, mas é justamente o que tem acontecido no Conjunto Habitacional José Bonifácio, zona leste de São Paulo. Um novo movimento pela educação pública surgiu espontâneamente entre alunos, professores e comunidade da Escola Estadual Profa. Ruth Cabral Troncarelli. Um fórum-conversa, um fórum-diálogo, um fórum andante, talvez na manifestação da amorosidade, da relação educando-educador. Um fórum andarilho, ambulante, nômade... porque não tem residência fixa, mas ao mesmo tempo está ocorrendo em várias localidades, num texto, numa idéia, numa palavração.

Nas esquinas esquecidas, fruto de seu saber moribundo, traz consigo a figura dos homens andantes: os nômades, cujo céu era o teto de uma moradia infinita. Nascido da Arte, pela Arte e para a Arte, "os nômades" enquanto fórum, fazem da vida, dos encontros, dos diálogos, e até mesmo dos olhares, resistência a um modelo falido, a um sistema em decomposição pedagógica tal qual o cenário tremendo presente na periferia da grande metrópole, privada do "aparecer", da "vita Activa" tal qual propunha Hannah Arendt.

Assustam à primeira vista pois: "Eles têm bocas escancaradas, dentes afiados, comem carne crua junto a seus cavalos, falam como gralhas, reviram os olhos e afiam constantemente suas facas." ( Kafka. Apud.Peter Pal Pélbart - Poder sobre a vida,Potências da Vida )

Inauguraram um novo endereço-passagem na internet, mais um de muitos local-fórum: nomade-zl.blogspot.com e de lá afiam suas facas.

Um grupo bem diferente entre si, e que descobre agora a pedagogia da diferença, do dissenso, através da qual os agenciamentos são possíveis, as novas relações, as novas formas de associações, as novas cooperações...

Com forte influência freireana, jovens, adolescentes Educandos-Educadores pretendem, sem folclorizar seu subdesenvolvimento, sem negar o que leram e onde vivem, sem deixar de citar a desnutrição a qual são submetidos, eles pretendem RECRIAR – REINVENTAR: "Existir é, assim, um modo de vida que é próprio ao ser capaz de transformar, de produzir, de decidir, de criar, de recriar, de comunicar-se " ( Paulo Freire ) ( Paulo Ricardo de Lima )

O Fórum Nômade – poderíamos dizer que se trata de um lugar, mas isso também não é possível. São lugares, na verdade. Multiplicidade de olhares, de vozes e de pontos de escuta. Não há uma linha de pensamento. Não há uma escola. Não pretendemos formar e tampouco doutrinar ninguém.

O Fórum Nômade é feito de lugares dispersos e de tempos reinventados a cada vez que se visita cada um desses lugares. O tempo do blog é um. O tempo do encontro nas calçadas esburacadas, outro. O tempo do Fórum-sala-de-aula, no pátio ou nos corredores da escola: outros tempos. O tempo da Intervenção, da atuação, do ato, da coxia, do palco, da performance e do terrorismo poético, são todos tempos diferentes. Às vezes marcado pelas velocidades – mas como nem sempre as velocidades da vida pós-moderna são uma coisa boa, às vezes se faz necessário demorar um pouco mais...se demorar um pouco na invenção de conceitos...aceitar que é necessário que o jovem, envelheça, mas que envelheça com a sabedoria do velho Nelson Rodrigues que ao longo de toda uma vida-obra teve o seu devir-criança...

Fórum marcado, então pela proliferação de lugares e tempos. Fórum de invencionices em que se torna possível tocar o tempo, dobrar o espaço a fim de torná-lo, de certa forma, uma matéria plástica, material de construção, tijolo. Ti-jo-lo.

É na fluidez, na versatilidade, na flexibilidade desses tempos e lugares reinventados que o Fórum Nômade se constitui como um construtor de referências: talvez seja isso, o Fórum Nômade é só um nome, e o que ele faz, ou torna possível fazer, é nada mais que criar espaços e tempos para a construção/invenção de referências. “ um grupo de fomentação cultural independente do que cada um faça nele: pesquisa, poesia, literatura, jornalismo, cinema, matemática...” ( Guilherme Diniz )

Justamente por reunir jovens ainda em processo de formação – ah! Como se nós, velhos, estivéssemos prontos! - não podemos esperar que primeiro se constitua um saber para somente depois iniciarmos o movimento de saída para o mundo, para a vida.

O Fórum Nômade quer intervir, atuar, fazer, criar, no mundo, agora! E não porque queira ardentemente alcançar algum fim: mas pelo processo mesmo, pela construção. Encontro de pessoas “que trabalham com o que gostam e que ensejam comunicar sua produção a outros amigos que queiram conhecer” ( Guilherme Diniz ). Por isso não é um partido político, não é seita religiosa, não é uma escola de pensamento. Também não tem dono. E nem chefe. Um processo que não é Ong, não é sindicato, nem movimento popular, muito menos partido político: algo que não sabemos o que é ainda...e que talvez nunca saibamos. Olhando com calma, um grupo heterogêneo, bastante gente interessada nesse espaço de discussão, em assuntos os mais variados.


Talvez o Fórum seja um circo: nos camarins, entre o cheiro de serragem molhada e o colorido das fantasias, exista o conluio de palhaços infames – doidos para ver o circo pegar fogo!

São artistas com desejos de produzir formas, cores, idéias, texturas, tons, intensidades, ruídos, vozes, brilhos, transparências, “intervir nessa triste paisagem simplesmente comunicando a produção daquilo que fazemos com gosto, por que nos dá sentido...”( Guilherme Diniz ). Educadores em busca de trocas, alternativas, possibilidades, meios, descobertas, invenções. Estudantes com vontade de mais vida, de mais encontros, de mais força, de mais beleza, menos feiura, menos brutalidade, menos dizer não e mais dizer sim à vida. Um monte de gente nas encruzilhadas do mundo experimentando caminhos. Um movimento de fora para dentro. Um movimento de dentro para fora. Uma escola sem muros, uma utopia. Utopia? Ainda essa lenga-lenga!? Sim!

Talvez o Fórum seja um circo: nos camarins, entre o cheiro de serragem molhada e o colorido das fantasias, exista o conluio de palhaços infames – doidos para ver o circo pegar fogo!


Quem disse que quero mudar o mundo? Quero instalar o Conflito.
Sim, pois onde há poder, há resistência. Instalar o conflito é causar justamente esse debate e não propor o consenso, mas o dissenso. O Conflito, ele mesmo, instaura uma nova configuração de forças na dinâmica das relações de poder que se dão não somente na chamada luta de classes, mas em todas as esferas, espaços e relações. A HEGEMONIA do Capital, tão presente em discursos inflamados, mais uma vez ver-se-á obrigada a enfrentar uma nova dinâmica em suas relações, o que nesse sentido altera por si só o status quo.

Um dos grandes problemas ao neoliberalismo pujante reside justamente nessa relação Jovem-Utopia, porque ela mesma altera o projeto inicial do capitalismo tardio, quando resiste ao papel imposto à juventude desse século: o papel tecnocrata, a ocupação técnica de setores estratégicos do mercado de trabalho, a fomentação de mão-de-obra especializada para ampliação do setor financeiro. Sim, uma vez instalada essa nova dinâmica de forças, o jovem deixa seu papel privado e passa a condição de agente público, de zoon politikon numa leitura Arendtiana. Cria-se o ócio criativo, provoca-se a atuação política na esfera pública, amplia-se as possibilidades, potencializa-se a recriação, a reinvenção, a releitura...

Agora imagine tal coisa em uma amplitude exponencial, imagine tal qual rizomas essa resistência em ampliações cada vez maiores, informes, variadas e múltiplas? Nesse sentido essa utopia ora proposta para nada serve? Em nada influi? ” ( Paulo Ricardo de Lima )

O Fórum é uma cidade. Com todas as suas tramas, uma cidade educadora, a cidade que traz inscrita em seus traçados toda uma história: a história da arte como história das cidades. Um jeito de habitar, de encontrar, de viver junto: inventar outros mundos. “ Não impondo uma forma, uma regra ou obrigando todos a fazer algo. Somente comunicando e com isso incentivando a produção de outro. Um verdadeiro contra-veneno, na minha opinião, para essa juventude frouxa e sem criatividade. desesperançosa com a dureza da realidade, trabalho-trabalho-trabalho. ( Guilherme Diniz )

O Fórum Nômade traz a marca que “caracteriza o ser humano ainda não embrutecido ou atingido pela própria fraqueza: a imaginação utópica, o Saber nômade, uma amorozidade nessa poemização.” ( Paulo Ricardo )

Sim, nos encontramos às vezes, nos reunimos de quando em quando e, “como cada um de nós é muita gente” somos uma verdadeira multidão. Um verdadeiro formigueiro. E como cada um traz uma imensidão de lugares e tempos diversos, o Fórum Nômade é uma miríade de possibilidades.

E é nômade né! Como se pode perceber, não se deixa capturar, apesar das muitas tentativas. Dispersos como os antigos ciganos; às vezes, perigosos como piratas. Conhecimento não se compra...

Nada disso nos impede, no entanto, de querer uma sistematicidade, um organismo, uma ata, um porto-seguro, uma fundamentação. Apenas não se acredita que essas coisas tenham caído do céu, como dádivas.

A fomentação cultural entre amigos é o que estou tentando dizer. Nada de formalidade, de regras, de membros. Não se trata de uma sociedade (muito embora seja o ideal, mas não se adequa ao momento). Unicamente pessoas que por si só fazem cultura, mas que até o momento não está em circulação na boca e na cabeça do outros, isto é, de nós.” ( Guilherme Diniz )

Certamente essa é uma aventura perigosa e – vamos ser sinceros: aqui há o risco nada pequeno de se perder. Que se registre: aventura é não saber onde vai dar a picada. Território de incertezas.

Resolvemos arriscar nosso próprio passo. É isso que o Fórum busca, a lenta construção de uma autonomia, o velho sonho da autonomia, a capacidade de andar, ainda que de modo errante.

O fato de que lidamos a todos os momentos com as relações entre o saber e o poder, incomoda a nós mesmos. E por isso procuramos fazer do fórum um exercício de “introdução a uma vida não fascista”. Mas em meio à angústia de nos percebermos cercados a todo momento pela dominação, encontramos também a “gostosura ( de ) sabermos que de nossas entranhas, num movimento brusco buscamos um opressor incubado. Veja quanta preocupação em não sustentar nem um 'Totem' sequer. Ninguém duvidará que este mesmo Fórum já nasceu questionando os opressores, os totens dessa sociedade. E essa questionalização, necessária a nosso Saber, nos fará...destruir as ideologias de nós mesmos, os alvoroços de nossas palpitações pelo lugar do opressor” ( Paulo Ricardo )

Aqui vai falar o poeta, o artista, o pensador curioso, o esboço de intelectual, subdesenvolvido, subordinado, moribundo...

O Fórum é uma experiência – e experiência é sempre algo de que se sai transformado – é uma experiência em termos de questionamento de nossa própria cultura bem como algo que nos permite pensar as operações e condições de pensamento e de vida que possibilitam um exercício de vida não fascista. Essa tentativa de inventar novos conceitos põe o pensamento em movimento. Liberta-se dos clichês que o impede, que nos impedem de pensar e se pensar. Pensar em tantas coisas...! nos modos pelos quais as nossas instituições - o Estado, a família, a escola, por ex. - se encontram em crise: todo um processo de desinstitucionalização atravessa o cenário, obrigando-nos a reconsiderar as práticas que até então pareciam perenes e seguras. Mas para uma cultura experimentar uma crise em suas instituições, são necessárias experiências-limítes. E são estas que devem ser interrogadas, questionadas...Este Fórum talvez seja uma dessas experiências, nós talvez sejamos essa experiência, cada um de nós...uma experiencia que leva em consideração as coisas da vida, inclusive as coisas medíocres que podem ser e são componentes indispensáveis para os agenciamentos dessa experimentação. Uma relação com o humano mas também com não humanos : com o vento, o clima, a vegetação, a nuvem, o dia, o outono, a luz de outono, a neblina, a doçura das uvas e o colorido das frutas, com enxames e cardumes, com os bandos migratórios...

É necessário um outro plano: aquele atravessado por movimentos, fluxos, velocidades e lentidões – a lentidão necessária à fabricação das pérolas ou vinhos encorpados ( Benjamin ). Sabe, é difícil acreditar, mas acredite: os livros sozinhos não podem dar conta disso tudo sozinhos...

Este Fórum talvez seja o espaço destinado às vidas-resistentes: vidas que se fazem obras de arte. Vidas-resistentes: vidas que se reinventam. Onde se exerce poder sobre a vida, a vida, também ela, age sobre o que incide sobre si. Biopotência: agora é a vida que faz fazer. A vida que flui, viva, faz viver cada um de nós em sua multiplicidade, fragmentação, devires, fluxos, explosões, tremores, plasmas...essa vida ressurge vibrante e terrível...um insurreição contra toda a dominação.


Fabiano Ramos Torres


sábado, 23 de agosto de 2008

Cidade ideal e novo mundo Século XVI

















Quando problematizamos a educação é necessario que se tenha um olhar minuncioso, esta que falamos é a do ensino publico e se classifica por constituição,no entanto como podemos argumentar, localizar problemas, e propor mudanças se a raiz do problema não esta propriamente na educação e sim na constituição que tem como base a sociedade definida em varios aspectos, historica, cultural,e etc...E em todos esses aspectos encontraremos falhas no "esclarecimento" de Kant e uma lacuna muito fragil e obvia que se da no conceito de publico e privado.

Pergunta:

Ideologia???Do que estamos falando?Somos o bom selvagem inocente? Por um acaso você ja fez um contrato social?

Não!Então por que nos observamos no mundo das utopias?

quinta-feira, 21 de agosto de 2008


Demerval Saviani – Entrevista à revista “Educação”.

Qual o diagnóstico que você faz da educação básica no Brasil? Quais os principais problemas, avanços e retrocessos que a educação vive?

Os muitos problemas da educação básica no Brasil podem ser resumidos em uma palavra: precariedade. As condições de funcionamento das escolas sob o aspecto material e pedagógico, a formação dos professores, suas condições de trabalho e de salário, a situação de vida da grande maioria dos alunos são extremamente precárias. Em conseqüência, apesar do grande avanço quantitativo ocorrido no século XX, quando o número de matrículas aumentou 20 vezes enquanto a população apenas quadruplicou, mesmo sob o aspecto quantitativo o déficit ainda é grande em razão do imenso atraso histórico em que nos encontramos, o que, obviamente, torna o desempenho qualitativo simplesmente sofrível.

Na sua opinião, qual é o principal desafio para alavancar o desenvolvimento e a qualidade da educação em nosso país?

Sem dúvida, o principal desafio diz respeito ao financiamento. É preciso acabar com a duplicidade pela qual, ao mesmo tempo em que se proclamam aos quatro ventos as virtudes da educação, exaltando sua importância decisiva num tipo de sociedade como esta em que vivemos, classificada como "sociedade do conhecimento", as políticas predominantes se pautam sempre pela busca da redução de custos, cortando investimentos. Ora, faz-se necessário ajustar as decisões políticas ao discurso imperante. Trata-se, pois, de eleger a educação como máxima prioridade, definindo-a como o eixo de um projeto de desenvolvimento nacional e, em conseqüência, carrear para ela todos os recursos disponíveis. Assim procedendo, estaríamos atacando de frente, simultaneamente, os demais problemas do país como saúde, segurança, desemprego, pobreza, infra-estrutura, de transporte, de energia, abastecimento, meio ambiente etc.

Na sua avaliação, os cursos de formação de educadores no Brasil conseguem preparar o professor para a sala de aula? Se sim ou não, por quê?

Não conseguem. Na verdade, as políticas de formação docente supõem que preparar o professor para a sala de aula possa ser feito pela simplificação e redução dos currículos, em cursos de curta duração, despidos de maiores preocupações com a fundamentação teórica. Pensa-se, assim, em matar dois coelhos com uma só cajadada: conseguir a façanha de formar professores mais capazes de enfrentar as salas de aula e, ao mesmo tempo, reduzir os custos de sua formação, propondo reformas que visam ao máximo de resultados com o mínimo de dispêndio e dando preferência para os institutos superiores de educação em detrimento dos cursos oferecidos pelas universidades públicas. Ora, o professor de que precisamos necessita ter uma sólida cultura. Logo, só pode ser formado em cursos de longa duração.



Was ist Aufklarüng - (Reposta à pergunta: O que é Esclarecimento? - Imannuel Kant - 5 de dezembro de 1783 )

Resposta à pergunta: o que é esclarecimento [Aufklärung]

Immanuel Kant

Esclarecimento [] é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento [].

A preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma tão grande parte dos homens, depois que a natureza de há muito os libertou de uma direção estranha (naturaliter maiorennes), continuem no entanto de bom grado menores durante toda a vida. São também as causas que explicam por que é tão fácil que os outros se constituam em tutores deles. É tão cômodo ser menor. Se tenho um livro que faz as vezes de meu entendimento, um diretor espiritual que por mim tem consciência, um médico que por mim decide a respeito de minha dieta, etc., então não preciso esforçar-me eu mesmo. Não tenho necessidade de pensar, quando posso simplesmente pagar; outros se encarregarão em meu lugar dos negócios desagradáveis. A imensa maioria da humanidade (inclusive todo o belo sexo) considera a passagem à maioridade difícil e além do mais perigosa, porque aqueles tutores de bom grado tomaram a seu cargo a supervisão dela. Depois de terem primeiramente embrutecido seu gado doméstico e preservado cuidadosamente estas tranqüilas criaturas a fim de não ousarem dar um passo fora do carrinho para aprender a andar, no qual as encerraram, mostram-lhes em seguida o perigo que as ameaça se tentarem andar sozinhas. Ora, este perigo na verdade não é tão grande, pois aprenderiam muito bem a andar finalmente, depois de algumas quedas. Basta um exemplo deste tipo para tornar tímido o indivíduo e atemorizá-lo em geral para não fazer outras tentativas no futuro.

É difícil portanto para um homem em particular desvencilhar-se da menoridade que para ele se tornou quase uma natureza. Chegou mesmo a criar amor a ela, sendo por ora realmente incapaz de utilizar seu próprio entendimento, porque nunca o deixaram fazer a tentativa de assim proceder. Preceitos e fórmulas, estes instrumentos mecânicos do uso racional, ou antes do abuso, de seus dons naturais, são os grilhões de uma perpétua menoridade. Quem deles se livrasse só seria capaz de dar um salto inseguro mesmo sobre o mais estreito fosso, porque não está habituado a este movimento livre. Por isso são muitos poucos aqueles que conseguiram, pela transformação do próprio espírito, emergir da menoridade e empreender então uma marcha segura.

Que porém um público se esclareça [] a si mesmo é perfeitamente possível; mais que isso, se lhe for dada a liberdade, é quase inevitável. Pois econtrar-se-ão sempre alguns indivíduos capazes de pensamento próprio, até entre os tutores estabelecidos da grande massa, que, depois de terem sacudido de si mesmos o jugo da menoridade, espalharão em redor de si o espírito de uma avaliação racional do próprio valor e da vocação de cada homem em pensar por si mesmo. O interessante nesse caso é que o público, que anteriormente foi conduzido por eles a este jugo, obriga-os daí em diante a permanecer sob ele, quando é levado a se rebelar por alguns de seus tutores que, eles mesmos, são incapazes de qualquer esclarecimento []. Vê-se assim como é prejudicial plantar preconceitos, porque terminam por se vingar daqueles que foram seus autores ou predecessores destes. Por isso, um público só muito lentamente pode chegar ao esclarecimento []. Uma revolução poderá talvez realizar a queda do despotismo pessoal ou da opressão ávida de lucros ou de domínios, porém nunca produzirá a verdadeira reforma do modo de pensar. Apenas novos preconceitos, assim como os velhos, servirão como cintas para conduzir a grande massa destituída de pensamento.

Para este esclarecimento [] porém nada mais se exige senão LIBERDADE. E a mais inofensiva entre tudo aquilo que se possa chamar liberdade, a saber: a de fazer um uso público de sua razão em todas as questões. Ouço, agora, porém, exclamar de todos os lados: não raciocineis! O oficial diz: não raciocineis, mas exercitai-vos! O financista exclama: não raciocinei, mas pagai! O sacerdote proclama: não raciocineis, mas crede! (Um único senhor no mundo diz: raciocinai, tanto quanto quiserdes, e sobre o que quiserdes, mas obedecei!). Eis aqui por toda a parte a limitação da liberdade. Que limitação, porém, impede o esclarecimento []? Qual não o impede, e até mesmo favorece? Respondo: o uso público de sua razão deve ser sempre livre e só ele pode realizar o esclarecimento [] entre os homens. O uso privado da razão pode porém muitas vezes ser muito estreitamente limitado, sem contudo por isso impedir notavelmente o progresso do esclarecimento []. Entendo contudo sob o nome de uso público de sua própria razão aquele que qualquer homem, enquanto SÁBIO, faz dela diante do grande público do mundo letrado. Denomino uso privado aquele que o sábio pode fazer de sua razão em um certo cargo público ou função a ele confiado. Ora, para muitas profissões que se exercem no interesse da comunidade, é necessário um certo mecanismo, em virtude do qual alguns membros da comunidade devem comportar-se de modo exclusivamente passivo para serem conduzidos pelo governo, mediante uma unanimidade artificial, para finalidades públicas, ou pelo menos devem ser contidos para não destruir essa finalidade. Em casos tais, não é sem dúvida permitido raciocinar, mas deve-se obedecer. Na medida, porém, em que esta parte da máquina se considera ao mesmo tempo membro de uma comunidade total, chegando até a sociedade constituída pelos cidadãos de todo o mundo, portanto na qualidade de sábio que se dirige a um público, por meio de obras escritas de acordo com seu próprio entendimento, pode certamente raciocinar, sem que por isso sofram os negócios a que ele está sujeito em parte como membro passivo. Assim, seria muito prejudicial se um oficial, a que seu superior deu uma ordem, quisesse pôr-se a raciocinar em voz alta no serviço a respeito da conveniência ou da utilidade dessa ordem. Deve obedecer. Mas, razoavelmente, não se lhe pode impedir, enquanto homem versado no assunto, fazer observações sobre os erros no serviço militar, e expor essas observações ao seu público, para que as julgue. O cidadão não pode se recusar a efetuar o pagamento dos impostos que sobre ele recaem; até mesmo a desaprovação impertinente dessas obrigações, se devem ser pagas por ele, pode ser castigada como um escândalo (que poderia causar uma desobediência geral). Exatamente, apesar disso, não age contrariamente ao dever de um cidadão se, como homem instruído, expõe publicamente suas idéias contra a inconveniência ou a injustiça dessas imposições. Do mesmo modo também o sacerdote está obrigado a fazer seu sermão aos discípulos do catecismo ou à comunidade, de conformidade com o credo da Igreja a que serve, pois foi admitido com esta condição. Mas, enquanto sábio, tem completa liberdade, e até mesmo o dever, de dar conhecimento ao público de todas as suas idéias, cuidadosamente examinadas e bem intencionadas, sobre o que há de errôneo naquele credo, e expor suas propostas no sentido da melhor instituição da essência da religião e da Igreja. Nada existe aqui que possa constituir um peso na consciência. Pois aquilo que ensina em decorrência de seu cargo como funcionário da Igreja, expõe-no como algo em relação ao qual não tem o livre poder de ensinar como melhor lhe pareça, mas está obrigado a expor segundo a prescrição de um outro e em nome deste. Poderá dizer: nossa igreja ensina isto ou aquilo; estes são os fundamentos comprobatórios de que ela se serve.

Tira então toda utilidade prática para sua comunidade de preceitos que ele mesmo não subscreveria com inteira convicção, em cuja apresentação pode contudo se comprometer, porque não é de todo impossível que em seus enunciados a verdade esteja escondida. Em todo caso, porém, pelo menos nada deve ser encontrado aí que seja contraditório com a religião interior. Pois se acreditasse encontrar esta contradição não poderia em sã consciência desempenhar sua função, teria de renunciar. Por conseguinte, o uso que um professor empregado faz de sua razão diante de sua comunidade é unicamente um uso privado, porque é sempre um uso doméstico, por grande que seja a assembléia. Com relação a esse uso ele, enquanto padre, não é livre nem tem o direito de sê-lo, porque executa uma incumbência estranha. Já como sábio, ao contrário, que por meio de suas obras fala para o verdadeiro público, isto é, o mundo, o sacerdote, no uso público de sua razão, goza de ilimitada liberdade de fazer uso de sua própria razão e de falar em seu próprio nome. Pois o fato de os tutores do povo (nas coisas espirituais) deverem ser eles próprios menores constitui um absurdo que dá em resultado a perpetuação dos absurdos.

Mas não deveria uma sociedade de eclesiásticos, por exemplo, uma assembléia de clérigos, ou uma respeitável classe (como a si mesma se denomina entre os holandeses) estar autorizada, sob juramento, a comprometer-se com um certo credo invariável, a fim de por este modo de exercer uma incessante supertutela sobre cada um de seus membros e por meio dela sobre o povo, e até mesmo a perpetuar essa tutela? Isto é inteiramente impossível, digo eu. Tal contrato, que decidiria afastar para sempre todo ulterior esclarecimento [] do gênero humano, é simplesmente nulo e sem validade, mesmo que fosse confirmado pelo poder supremo, pelos parlamentos e pelos mais solenes tratados de paz. Uma época não pode se aliar e conjurar para colocar a seguinte em um estado em que se torne impossível para esta ampliar seus conhecimentos (particularmente os mais imediatos), purificar-se dos erros e avançar mais no caminho do esclarecimento []. Isto seria um crime contra a natureza humana, cuja determinação original consiste precisamente neste avanço. E a posteridade está portanto plenamente justificada em repelir aquelas decisões, tomadas de modo não autorizado e criminoso. Quanto ao que se possa estabelecer como lei para um povo, a pedra de toque está na questão de saber se um povo se poderia ter ele próprio submetido a tal lei. Seria certamente possível, como se à espera de lei melhor, por determinado e curto prazo, e para introduzir certa ordem. Ao mesmo tempo, se franquearia a qualquer cidadão, especialmente ao de carreira eclesiástica, na qualidade de sábio, o direito de fazer publicamente, isto é, por meio de obras escritas, seus reparos a possíveis defeitos das instituições vigentes. Estas últimas permaneceriam intactas, até que a compreensão da natureza de tais coisas se tivesse estendido e aprofundado, publicamente, a ponto de tornar-se possível levar à consideração do trono, com base em votação, ainda que não unânime, uma proposta no sentido de proteger comunidades inclinadas, por sincera convicção, a normas religiosas modificadas, embora sem detrimento dos que preferissem manter-se fiéis às antigas. Mas é absolutamente proibido unificar-se em uma constituição religiosa fixa, de que ninguém tenha publicamente o direito de duvidar, mesmo durante o tempo de vida de um homem, e com isso por assim dizer aniquilar um período de tempo na marcha da humanidade no caminho do aperfeiçoamento, e torná-lo infecundo e prejudicial para a posteridade. Um homem sem dúvida pode, no que respeita à sua pessoa, e mesmo assim só por algum tempo, na parte que lhe incumbe, adiar o esclarecimento []. Mas renunciar a ele, quer para si mesmo quer ainda mais para sua descendência, significa ferir e calcar aos pés os sagrados direitos da humanidade. O que, porém, não é lícito a um povo decidir com relação a si mesmo, menos ainda um monarca poderia decidir sobre ele, pois sua autoridade legislativa repousa justamente no fato de reunir a vontade de todo o povo na sua. Quando cuida de toda melhoria, verdadeira ou presumida, coincida com a ordem civil, pode deixar em tudo o mais que seus súditos façam por si mesmos o que julguem necessário fazer para a salvação de suas almas. Isto não lhe importa, mas deve apenas evitar que um súdito impeça outro por meios violentos de trabalhar, de acordo com toda sua capacidade, na determinação e na promoção de si. Causa mesmo dano a sua majestade quando se imiscui nesses assuntos, quando submete à vigilância do seu governo os escritos nos quais seus súditos procuram deixar claras suas concepções. O mesmo acontece quando procede assim não só por sua própria concepção superior, com o que se expõe à censura: Ceaser non est supra grammaticos, mas também e ainda em muito maior extensão, quando rebaixa tanto seu poder supremo que chega a apoiar o despotismo espiritual de alguns tiranos em seu Estado contra os demais súditos.

Se for feita então a pergunta: "vivemos agora uma época esclarecida []"?, a resposta será: "não, vivemos em uma época de esclarecimento []. Falta ainda muito para que os homens, nas condições atuais, tomados em conjunto, estejam já numa situação, ou possam ser colocados nela, na qual em matéria religiosa sejam capazes de fazer uso seguro e bom de seu próprio entendimento sem serem dirigidos por outrem. Somente temos claros indícios de que agora lhes foi aberto o campo no qual podem lançar-se livremente a trabalhar e tornarem progressivamente menores os obstáculos ao esclarecimento [] geral ou à saída deles, homens, de sua menoridade, da qual são culpados. Considerada sob este aspecto, esta época é a época do esclarecimento [] ou o século de Frederico.

Um príncipe que não acha indigno de si dizer que considera um dever não prescrever nada aos homens em matéria religiosa, mas deixar-lhes em tal assunto plena liberdade, que portanto afasta de si o arrogante nome de tolerância, é realmente esclarecido [] e merece ser louvado pelo mundo agradecido e pela posteridade como aquele que pela primeira vez libertou o gênero humano da menoridade, pelo menos por parte do governo, e deu a cada homem a liberdade de utilizar sua própria razão em todas as questões da consciência moral. Sob seu governo os sacerdotes dignos de respeito podem, sem prejuízo de seu dever funcional expor livre e publicamente, na qualidade de súditos, ao mundo, para que os examinasse, seus juízos e opiniões num ou noutro ponto discordantes do credo admitido. Com mais forte razão isso se dá com os outros, que não são limitados por nenhum dever oficial. Este espírito de liberdade espalha-se também no exterior, mesmo nos lugares em que tem de lutar contra obstáculos externos estabelecidos por um governo que não se compreende a si mesmo. Serve de exemplo para isto o fato de num regime de liberdade a tranqüilidade pública e a unidade da comunidade não constituírem em nada motivo de inquietação. Os homens se desprendem por si mesmos progressivamente do estado de selvageria, quando intencionalmente não se requinta em conservá-los nesse estado.

Acentuei preferentemente em matéria religiosa o ponto principal do esclarecimento
[], a saída do homem de sua menoridade, da qual tem a culpa. Porque no que se refere às artes e ciências nossos senhores não têm nenhum interesse em exercer a tutela sobre seus súditos, além de que também aquela menoridade é de todas a mais prejudicial e a mais desonrosa. Mas o modo de pensar de um chefe de Estado que favorece a primeira vai ainda além e compreende que, mesmo no que se refere à sua legislação, não há perigo em permitir a seus súditos fazer uso público de sua própria razão e expor publicamente ao mundo suas idéias sobre uma melhor compreensão dela, mesmo por meio de uma corajosa crítica do estado de coisas existentes. Um brilhante exemplo disso é que nenhum monarca superou aquele que reverenciamos.

Mas também somente aquele que, embora seja ele próprio esclarecido [], não tem medo de sombras e ao mesmo tempo tem à mão um numeroso e bem disciplinado exército para garantir a tranqüilidade pública, pode dizer aquilo que não é lícito a um Estado livre ousar: raciocinais tanto quanto quiserdes e sobre qualquer coisa que quiserdes; apenas obedecei! Revela-se aqui uma estranha e não esperada marcha das coisas humanas; como, aliás, quando se considera esta marcha em conjunto, quase tudo nela é um paradoxo. Um grau maior de liberdade civil parece vantajoso para a liberdade de espírito do povo e no entanto estabelece para ela limites intransponíveis; um grau menor daquela dá a esse espaço o ensejo de expandir-se tanto quanto possa. Se portanto a natureza por baixo desse duro envoltório desenvolveu o germe de que cuida delicadamente, a saber, a tendência e a vocação ao pensamento livre, este atua em retorno
progressivamente sobre o modo de sentir do povo (com o que este se torna capaz cada vez mais de agir de acordo com a liberdade), e finalmente até mesmo sobre os princípios do governo, que acha conveniente para si próprio tratar o homem, que agora é mais do que simples máquina, de acordo com a sua dignidade.